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sexta-feira, 28 de junho de 2013

MOBY DICK - Por Herman Melville


MOBY DICK - A BALEIA 
Por Herman Melville 
                      Ismael é nome do personagem a quem o escritor confiou a incumbência de narrar-nos a história dessa caçada  à grande baleia. Não nos é difícil descobrir que, nele, Herman Melville incutiu um pouco de si mesmo, tanto que este personagem se torna caçador de baleias mais por espírito de aventura do que pela ânsia de lucro, e resulta diferente daqueles que se apresentarão no decurso do romance. Será, de fato, Ismael que, interrompendo a narrativa, comentará os acontecimentos de maneira arguta e objetiva; será ele, ainda, quem nos dará todos os esclarecimentos técnicos sobre as baleias, os baleeiros e a difícil arte da caça; ele nos falará em tom catedrático, mais digno de um literato do que de um marujo. Nós, por falta de espaço, não nos deteremos nestes longos capítulos, nos quais o "alter ego" de Melville, baseando-se em tratados científicos, na Bíblia e na literatura antiga e contemporânea, nos transmite verdadeiras e próprias lições sobre baleeiros. Todavia, convém observar que tais dissertações urgem frequentemente no livro, por que isso nos fará melhor compreender que Moby Dick não é simplesmente o romance de um escritor de histórias de aventuras, mas sim a obra de um literato, amante, na mesma proporção, das meditações sobre livros e das movimentadas experiências da vida. 
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                                                      A HISTÓRIA DE MOBY DICK 
                      No início do século XIX, Ismael, moço muito pobre e corajoso, depois de haver militado por algum tempo na marinha mercante, decide embarcar numa baleeira, com um contrato regular de três ou quatro anos; seja porque o atraísse a perspectiva de navegar por mares desconhecidos, seja por se encontrar curiosos por experimentar  a arriscadíssima caça à baleia; porque naquele tempo caçar baleia era profissão que exigia muita coragem, uma vez que, ao contrário de nossos dias, onde caçar baleia é uma covardia, as condições de caça naquela época eram muito rudimentares. 
                       Tendo deixado Manhattan em pleno inverno, Ismael vai para a Nova Bedford, a fim de alcançar, dali, Nantucket, o porto de onde habitualmente zarpam os baleeiros de então. 
                        Em Nova Bedford, todo compenetrado com a nova profissão que o aguarda, vai hospedar-se numa taverna de marinheiros, a ali o taberneiro concorda em recebê-lo desde que ele partilhe a cama com outro baleeiro. O encontro entre os dois ocasionais companheiros de quarto é dos mais singulares, porque Ismael, tendo adormecido antes da chegada do desconhecido, é despertado em plena noite pela entrada deste, e quase enlouquece de pavor ao ver que o homem é um selvagem de uma ilha dos Mares do Sul, talvez pertencente a alguma tribo de antropófagos. 
                       Queequeg ( esse é o nome do selvagem), apesar da sua atroz aparência, é, na realidade, um homem de boa índole e habilíssimo arpoador e, embora a tatuagem e a religião de seu povo, bastante civilizado.  Os dois travam amizade e resolvem enfrentar juntos os perigos do mar. Alguns dias depois, em Nantucket, Ismael encontra encorajamento para si e para seu companheiro, a bordo do "Pequod", uma velha baleeira, veterana de numerosas caças à baleia (como atestam os troféus de animais mortos que a ornamentam), e nela ambos zarpam, pouco tempo depois. 
                        A tripulação de "Pequod" é das mais heterogêneas; os homens que a compõem são oriundos das mais distantes regiões e cada um deles possui uma história própria e uma personalidade diversa; há o marinheiro de Natucket e aquele holandês, o marinheiro francês e aquele siciliano, o irlandês, o maltês, o marujo dos açores e aquele inglês. Diversa é a idade, diverso é o aspecto, diversa é a maneira de manifestar a própria coragem . Empada, o cozinheiro negro, possui um rosto rugoso, mas tem toda a astúcia e a fantasia de sua raça, ao passo que Pip, ao qual cabem as funções mais genéricas da vida de bordo, é um rapaz tímido, meio arredio e, talvez por ser menos esperto do que os demais, é também o menos corajoso. Possantes e hábeis, ao invés, são os três arpoadores, isto é, os homens que tem a incumbência de lançar o arpão durante a caça baleia. Queequeg, o selvagem amigo de Ismael, Tashtego, um pele vermelha de cabelos compridos e figura ágil e impulsiva, e Dagoo, um negro de estatura gigantesca, que ainda não se resolveu  abandonar os deslumbrantes balangandãs de sua raça. Portanto, os homens da tripulação provém de todos os recantos do mundo, contudo, obedecem, com igual prontidão, as ordens dos oficiais. Starbuck, o imediato, esperto mas prudente, respeitoso para com seu comandante, mas resolvido a enfrentá-lo quando este transmite ordens que lhe parecem um tanto arriscadas; Stubb, alguns anos mais jovem, sempre disposto a encarar os acontecimentos com espírito humorístico; Flask, recentemente promovido ao posto de oficial e ainda um tanto tímido e inseguro; e, finalmente, Acab, o capitão. Ismael não o conhecera antes de embarcar-se, porque Acab estava de cama, convalescendo de um horrível ferimento, que lhe custara a amputação de uma perna. 
                     Nos primeiros dias de navegação, Acab, a quem está confiada a sorte da equipagem, não se deixa ver; passa longas horas na cabina, ou perambula pelo tombadilho  sem trocar palavra com os oficiais, com a testa franzida e olhar fixo no mar, com se um íntimo conflito o perturbasse. Mas, quando cai a noite e os marujos, em seus imundos catres, procuram adormecer, Acabe passeia sobre o convés, arrastando pesadamente a perna de osso de baleia,  que o mestre carpinteiro lhe fizera. E eis que um dia toda aquela mágoa que lhe rói o peito é revelada à tribulação: faz a turma toda se reunir e, diante dos rostos ansiosos dos marinheiros, conta-lhes os tristes feitos da Baleia branca, Moby Dick, e pragueja contra ela, que a mutilara durante  uma caça, assim como mutilara e matara outros corajosos que tentaram caçá-la; e incita seus ajudá-lo a vingar-se, acompanhando-o através de todos os mares frequentados por baleias, até encontrá-la e matá-la. E, como que para sinetar esta declaração de impiedosa vingança, Acab manda pregar no mastro um dobrão de ouro, que ele dará ao primeiro que avistar a baleia. Tremem os tripulantes, ante as palavras do seu capitão, e há ainda quem sacuda a cabeça, em sinal de dúvida, porque desde muito tempo aprenderam a temer Moby Dick, a baleia que se distingue das comuns não só pela sua cor, mas também por sus espécie de maligna inteligência. mas o ímpeto de Acab convence, e todos fazem este juramento;  o "Pequod" não regressará enquanto não houver encontrado Moby Dick, ainda que o preço para esta empresa deva ser a morte. 
                    A partir daquele momento, a sombra da Baleia Branca parece pairar sobre os tripulantes, ainda que, pela necessidade de lucro da própria tripulação, o capitão renuncia caçar as baleias que se aventurarem em sua rota. É Tashtego, o arpoador índio, aquele que em primeiro lugar consegue avistar o característico esguicho de uma baleia. Imediatamente as lanchas são lançadas ao mar, três comandadas por oficiais, assistidos pelos arpoeiros, e uma comandada pelo próprio Acab. A tripulação desta última é, porém, composta não pelos homens que Ismael já havia conhecido, mas sim por misteriosos marujos embarcados clandestinamente, por desejo de Acab, que os quisera consigo como guarda-costas. A caça á baleia não tem resultado feliz, porque o cetáceo consegue escapar; mas, não transcorre muito tempo e outra se apresenta; e desta feita é morta pela arpão lançado por Stubb. As lanchas voltam ao navio arrastando o enorme troféu, que é preso bem firma nas amuradas. No dia seguinte, o tombadilho se transforma numa espécie de enorme açougue, e o sangue da baleia suja os homens  e os apetrechos; pedaço por pedaço, o corpo do cetáceo é de fato içado à bordo e a estiva se inunda com sua abundante gordura. Semi-imerso na água, o imenso cadáver é sacudido por contínuas convulsões, que tornam ainda mais difícil o trabalho dos arpoadores, entretidos em cortar-lhe o dorso em grandes secções; tais abalos são devidos aos tubarões que, atraídos pelo odor do sangue, acorrem às  centenas e agora se encontram fazendo farto banquete, sob o ventre do animal. 

                   Os marinheiros do "Pequod" enfrentarão outras peripécias, geralmente com bom êxito, sempre perigosas, antes de terem notícia de que Moby Dick deve estar circulando não muito distante deles.  Já transcorreu mais de um ano; as estivas estão superlotadas de presas e, graças a Deus, ninguém ainda perdeu a vida. Somente Pip perdeu algo e, pode-se dizer, o melhor de si mesmo; durante a caçada, ele fora atirado para fora da lancha e caíra ao mar, ali permanecendo por longas horas, até quando os homens do "Pequod" conseguiram descobri-lo. E agora ele perdeu o juízo e vaga pelo navio, imerso em longos e desconexos solilóquios, nos quais per vezes menciona a Baleia Branca.  O "Pequod", neste ínterim, já cruzou com algumas baleeiras e com elas permutou notícias quanto ao andamento da caça; mas, às outras baleeiras, Acab nada perguntou sobre a longínqua Nantucket nem sobre a marcha  da navegação ou da ubiquação dos bandos de baleias, mas sim, sempre, como se estivesse obcecado com este nome, sobre Moby Dick. E por todas as tripulações sempre foi aconselhado a evitá-la, porque há quem a conheça através das narrativas de outros marinheiros e que já experimentou pessoalmente a perfídia do monstro. E agora, depois destes meses de busca, o capitão da "Raquel" trás notícias preciosas sobre Moby Dick e também as mais horríveis; ele, de fato, tentara caçá-la no dia anterior, mas justamente nesta luta vã e extenuante, perdera um filho, pequeno marujo de 12 anos,  e uma lancha repleta de homens; agora, a "Raquel" vagueia por aqueles mares, na esperança quase absurda de ainda poder  localizar algum sobrevivente.  Estremece a turma do "Pequod" ante aquela narrativa; mas o seu capitão, agora que o inimigo mortal está mais próximo, parece ainda mais firme em seu desejo de vingança. De nada valem os lamentos do capitão do "Alegria", encontrado alguns dias depois, que lhe exibe os míseros despojos de um marinheiro, o único, dos cinco mortos por Moby Dick que ainda será sepultado,  para fazê-lo mudar de opinião.

                 Finalmente é avistada a Baleia Branca; seu copo gigantesco e níveo cintila sob os raios do sol e ela, plácida, nada entre as vagas, brincando à sua maneira com as ondas, como se nada neste mundo lhe causasse medo. Começa a caçada, a mais longa e terrível de todas. Durante três dias consecutivos, as lanchas são lançadas ao mar. Moby Dick é acuada de perto e os arpões são atirados contra ela. Mas, por três vezes, Moby Dick consegue desviar-se dos arpões e dividir as lanchas, enfraquecendo-lhes o poderio, revirando-as com seus tremendos golpes de cauda. Mas, no terceiro dia, um fato mais horrível ocorre: Moby Dick, após haver esfacelado as lanchas, atira-se contra o navio, e aquele corpo enorme e cruel, que nenhum arpão conseguiria ferir mortalmente, abre uma larga brecha na carcaça de madeira. 
                   Com Acab, o vingador, pereceu quase toda a tripulação, e sobre a água boia a baleia, em sua bestial inconsciência, brincando à sua maneira com esguichos. 
                   Somente um escapou à morte, Ismael. O socorro chegou-lhe, ainda que indiretamente, de parte de Queequeg, o selvagem  ligado a Ismael por uma amizade tão grande que por ele  estava disposto a tudo, até morrer. E foi, de foto, o esquife de madeira, que Queequeg, pressagiando sua próxima morte, manda construir a bordo do navio, que, flutuando sobre a imensidão das águas, ofereceu a Ismael um apoio a que agarrar-se, um seguro sustentáculo. Parece um paradoxo, mas para Ismael aconteceu mesmo assim; aquele ataúde, que deveria ser o túmulo de seu melhor amigo, foi para si a salvação. Agarrado a ele, acuado de perto pelos tubarões e pelos selvagens falcões marinhos, foi avistado e recolhido pelos homens do "Raquel", ainda velejando por aquelas águas, em busca dos marinheiros perdidos. 
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BREVE BIOGRAFIA de Herman Melville.
                    Herman Melville, autor deste magnífico romance, que figura entre os mais vigorosos e complexos da literatura americana, Nasceu em Nova York, em 1819, e morreu na mesma cidade, em 1891, após a haver entre seus originais para serem impressos, além de "Moby Dick, ou A Baleia", que é sua obra prima, 1851; "Um olhar à vida polinésia" 1846 e "Omoo, uma história de aventuras nos Mares do Sul, 1847. Estes romances, embora não sejam cem por cento autobiográficos, são, todavia, inspirados em experiências realizadas pelo próprio autor, em sua mocidade. A vida de Melville foi sobremaneira aventurosa e grande parte dela foi transcorrida nos mares. 
                    Em 1842, Melville partira a bordo de um navio, como marinheiro, mas, quando o barco chegou às ilhas Marquesas, e precisamente na cidade de Nukeva, ele, farto da vida que levava a bordo, decidiu não mais embarcar e passou a viver na ilha, em companhia de uma tribo de antropófagos, durante quatro longos meses. Este seu romanesco período de vida foi por ele descrito, nos seus mais minuciosos detalhes, em seu primeiro romance "Typee" ou "Um olhar sobre a vida polinésia", já citado acima. Haviam passado cerca de quatro meses desde que ali desembarcara, quando chegou às ilhas Marquesas um navio australiano, que desejava engajar marinheiros.  A tripulação libertou, portanto, Melville daquele suave cativeiro e o reconduziu para bem distante daqueles  selvagens, junto aos homens civilizados aos quais pertencia. Depois dessa romanesca experiência de vida, Melville prestou serviço, como marinheiro, na armada norte-americana. 
Nicéas Romeo Zanchett    

terça-feira, 25 de junho de 2013

O CRIME - Por Dostoievsky




O CRIME
Por Feodor Dostoievsky 

                  Como na sua última visita, Kaskolnikoff viu a porta entreabrir-se vagarosamente e, pela estreita fenda, dois olhos  brilhantes fixaram-se nele com expressão de desconfiança. Neste momento a serenidade abandonou-o e chegou a fazer um disparate que podia ter deitado tudo a perder. 
                  Receando que Alena Ivanovna tivesse medo de se achar a sós com um indivíduo cujo aspecto não era dos mais tranquilizadores, puxou a porta, para que a velha não a tornasse fechar. A avarenta não tentou fazê-lo, mas não largou o fecho, sendo assim arrastada para o patamar. Como se conservasse atravessada no limiar e não deixasse a passagem livre, Raskolnikoff  avançou para ela. Assustada, deu um passo para trás, quis falar, mas não pode pronunciar uma palavra e fitou o visitante com olhar espantado. 
                   - Bom dia, Alena Ivanovna, cumprimentou ele no tom mais despreocupado que pode afectar, trago-lhe... um objeto... mas entremos... para avaliar, é preciso examiná-lo à luz...
                   E sem esperar que a velha o convidasse a entrar, passou para o quarto. A usurária segui-o e desentravou-se-lhe a língua. 
                   - Meu Deus! Mas que quer? Quem é o Senhor? Que deseja? 
                   - Então, Alena Ivanovna, não me conhece? Raskolnikoff ! Tome, é o penhor em que lhe falei no outro dia...
                   E apresentou-lhe o embrulho. 
                   Alena Ivanovna ia examiná-lo, mas repentinamente reconsiderou e erguendo a cabeça cravou um olhar penetrante e desconfiado no visitante que, com tal sem-cerimônia, se tinha introduzido em sua casa. Fitou-o assim durante um minuto. Raskolnikoff julgou mesmo ler o olhar da velha expressão escarninha, como se ela já desconfiasse de tudo. Sentiu que perdia o sangue frio, que chegava a ter medo e que, se esse mudo inquérito durasse meio minuto mais, com certeza deitaria a fugir. 
                   - Por que olha desse modo para mi, como se não me conhecesse? interrogou ele subitamente, zangado também. Se aceita o objeto, está muito bem; se não o quer, acabou-se, vou a outra parte; é desnecessário fazer-me perder tempo. 
                   Estas palavras escaparam-lhe sem as ter premeditado. 
                   A linguagem decidida de Raskolnikoff produziu ótima impressão na velha.
                   - Mas por que tem tanta pressa, batuchka? E o que vem a ser isto? interrogou ela mirando o embrulho. 
                   - É a cigarreira de prata de que lhe falei ha dias. 
                   A velha estendeu a mão. 
                   - Como está pálido! E as mãos tão trêmulas! Está doente, batuchka ? 
                   - Tenho febre, respondeu ele secamente. Como não se há de estar pálido quando se não tem que comer! concluiu a custo. 
                   As forças abandonavam-no novamente. mas a resposta parecia natural; a velha aceitou o penhor. 
                   - O que é? perguntou ainda outra vez, tomando o peso ao embrulho e olhando fixamente o interlocutor. 
                   - Um objeto... uma cigarreira... de prata... veja. 
                   - É singular, não parece de prata!... E como isto esta atado! 
Enquanto Alena Ivanovna tentava desatar o pequeno embrulho, ia-se aproximando da luz (a despeito do calor asfixiante, fechara todas as janelas); nessa posição voltava costas ao visitante e durante alguns momentos não se preocupou com ele. Raskolnikoff desbotou o casaco e puxou o machado, sem o tirar completamente do nó corredio, limitando-se a segurá-lo com a mão direita. Sentia que os membros se lhe paralisavam. Receou deixar cair a arma... repentinamente, a cabeça começou a andar-lhe à roda... 
                    - Mas que demônio está aqui dentro? exclamou Alena Ivanovna zangada, fazendo um movimento para o lado de Raskolnikoff. 
                    Não havia um momento a perder. Raskolnikoff tirou o machado debaixo do casaco, levantou-o no ar segurando-o com ambas as mãos, e quase maquinalmente, porque se sentia sem força, deixou-o cair sobre a cabeça da velha. Mas apenas vibrou o golpe, voltou-lhe a energia física. 
                     Alena Ivanovna estava, como de costume, com a cabeça descoberta. Os cabelos grisalhos e raros, untados com azeite, formavam uma delgada trança presa na nuca por um bocado de pente de chifre. O golpe fendeu-lhe o sinciput, para o que contribuiu a pequena estrutura da vítima,que apenas soltou um gemido e cambaleou, tendo contudo ainda forças para levar à cabeça as mãos numa das quais  conservava o embrulho. Então Kaskolnikoff, cujos braços recuperaram todo o vigor, vibrou mais dois golpes no sinciput da avarenta. O sangue golfou abundante e o corpo caiu pesadamente no chão. Vendo a vítima cair, Raskolnikoff recuou; mas de repente inclinou-se sobre o rosto da velha; estava morta. Os olhos desmesuradamente abertos pareciam querer saltar das orbitas; os arrancos da agonia tinham-lhe dado às feições um aspecto horrível. 
                     O assassino pousou o machado no chão e preparou-se  para revistar o cadáver, tomando as maiores precauções para não se machucar com o sangue; recordava-se de que na sua última visita à velha ela tirara as chaves da algibeira direita do vestido. Estava em plena posse das faculdade intelectuais; não sentia vertigens, o menor atordoamento, mas as mãos continuavam a tremer-lhe. Mais tarde recordou-se de que fora muito cauteloso e que tivera o maior cuidado em não se sujar... Depressa encontrou as chaves; como da outra vez, estavam todas presas numa argola de aço. 
                      Raskolnikoff passou imediatamente ao quarto de cama. Este compartimento era muito pequeno; dum lado havia um grande oratório cheio de imagens; do outro um leito muito limpo, com coberta de seda feita de retalhos e acolchoada. Junto da parede uma cômoda. Caso singular! Quando Kaskolnikoff começou a experimentar as chaves, um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Pensou por um momento em abandonar tudo e retirar-se; mas esse pensamento durou um instante; era já tarde para recuar. 
                     Um sorriso contraía-lhe os lábios por tal ter pensado, quando repentinamente teve um sobressalto terrível: se por acaso a velha não estivesse ainda morta, se voltasse a si? Largou as chaves, correu para junto do corpo, pegou no machado e preparou-se para descarregar novo golpe sobre a sua vítima; mas a arma, já erguida, não desceu. Alena Ivanovna estava morta e bem morta, não havia dúvida. Inclinando-se novamente para examinar de perto, Raskolnikoff verificou que o crânio estava despedaçado. O sangue empapava no chão. Reparando de repente num cordão que a usurária tinha no pescoço, Raskolnikoff puxou-o com força, mas o cordão resistiu e não partiu. 
                      O assassino tentou então tirá-lo, fazendo-o descer pelo corpo, sendo mais feliz nesta tentativa. O cordão encontrou um obstáculo e deixou de descer. Raskolnikoff levantou impacientemente o machado, pronto a ferir o cadáver para cortar com o mesmo golpe o nó; mas resolveu não proceder com tanta brutalidade. Por fim, depois de dois minutos de esforços que lhe deixaram as mãos arroxeadas, conseguiu partir o cordão com o gume do machado sem tocar o cadáver. Como supusera, do cordão pendia uma bolsa a par de uma pequena medalha esmaltada e duas cruzes, uma de cipreste e outra de cobre. A bolsa, ensebada, um pequeno saco de camurça, estava completamente cheia. Raskolnikoff meteu-a na algibeira sem verificar o conteúdo, atirou as cruzes sobre o peito da velha, e, levando o machado, entrou apressadamente no quarto de cama. 
                      A sua impaciência era enorme; agarrou novamente as chaves e voltou à tarefa interrompida. Mas eram infrutuosas as tentativas para abrir o móvel, o que se devia atribuir mais aos repetidos enganos de que à tremura das mãos; ele via, por exemplo, que uma chave não servia na fechadura e teimava em fazê-la entrar. Subitamente recordou-se de uma conjectura que fizera na sua última visita; a chave grande, dentada, junta às outras mais pequenas, devia ser de algum cofre onde Alena tivesse talvez fechado todo o seu dinheiro. Abandonando o móvel, procurou debaixo da cama, lembrando-se que é costume das velhas esconderem em tal sítio os pecúlios. 
                      Efetivamente lá estava um cofre de pouco mais de um archine de comprimento, (unidade russa de comprimento) forrado de marroquim vermelho. A chave grande servia perfeitamente na fechadura. Logo que abriu o cofre, Raskolnikoff viu, sobre um pano branco, uma peliça com guarnições encarnadas, debaixo da qual estava um vestido de seda, e depois deste um chale; no fundo parecia haver apenas farrapos. O assassino limpou ao marroquim vermelho as mãos ensanguentadas. 
                      - No encarnado o sangue há de perceber-se menos. 
                      Depois reconsiderou;
                      - Meu Deus, estarei eu doido? 
                      Mas apenas tocou nas roupas, caiu de entre as peles um relógio de ouro. Revolveu então o conteúdo do cofre. Entre os farrapos havia objetos de ouro, representando, naturalmente, cada um deles um penhor. Eram pulseiras, cadeias, brincos, alfinetes de gravata, uns encerrados em estojos, outros embrulhados em pedaços de papel e atados com cordéis. 
                      Raskolnikoff não hesitou; encheu as algibeiras das calças e do casaco com as jóias, sem abrir os estojos, sem tocar nos embrulhos; mas repentinamente teve de interromper-se...
                     Ouviu passos no quarto onde estava o cadáver. Sentiu-se gelado de pavor. Mas o ruído deixou de se ouvir; julgou-se vítima duma alucinação; quando de repente percebeu distintamente um grito, ou antes um fraco gemido. Passado um minuto ou dois, tudo recaiu novamente num silêncio de morte. Raskolnikoff setara-se no chão, junto ao cofre, e esperava, respirando dificilmente. De repente estremeceu, agarrou o machado e saiu do quarto de cama. 
                    No meio do aposento Isabel, sobraçando um grande embrulho, contemplava com olhar aterrado o corpo hirto da irmã; pálida como um cadáver, parecia não ter forças para soltar um grito. À brusca aparição do assassino começou a tremer e um suor gelado inundou-lhe o rosto; tentou erguer os braços, abrir a boca, mas não fez o menor gesto, não emitiu o menor som, e recuando vagarosamente, com os olhos fixos em Raskolnikoff, meteu-se num canto. A pobre recuara sem dizer uma palavra, como se a respiração lhe faltasse. O assassino avançou para ela com o machado erguido; os lábios da infeliz contraíram-se e tremeram como os das crianças quando tem medo, olhando para o objeto que as aterra.
                     O terror dominava por tal forma a desgraçada que, vendo-se ameaçada pela arma, nem sequer pensou em preservar a cabeça, por esse gesto maquinal que em tai casos sugere o instinto de conservação. Afastou apenas o braço esquerdo e estendeu-o vagarosamente na direção do assassino, como para o desviar. O ferro abriu-lhe o crânio, fendendo toda a aparte superior da fronte até quase ao sinciput. Isabel caiu redondamente, morta. Com a cabeça perdida, Raskolnikoff pegou no embrulho que a sua segunda vítima trazia, para logo o largar e correr para a casa de entrada. 
                    Estava cada vez mais alterado, sobretudo desde que cometera o segundo assassínio, que não premeditara. Tinha pressa de fugir. Se naquele momento estivesse em estado de perceber melhor as coisas, se lhe tivesse sido possível calcular todas as dificuldades da situação, vê-la tão desesperada, tão horrorosa, tão absurda como realmente era, compreender quantos obstáculos tinha ainda de remover, talvez mesmo novos crimes a praticar, para poder abandonar essa casa e refugiar-se na sua, teria provavelmente renunciado á luta e ido ato contínuo denunciar-se; nem se pode dizer que posse a pusilanimidade que o levaria a isso, mas o horror do que fizera. Essa impressão ia tomando vulto a cada momento.  Por coisa alguma se aproximaria agora do cofre nem entraria no quarto. 
                     Mas, a pouco e pouco, o seu espírito preocupou-se com outros pensamentos e caiu numa espécie de vaga meditação; por momento o assassino parecia esquecer-se de si, ou antes de esquecer-se do principal para pensar em ninharias. Lançando os olhos para a cozinha, viu um alguidar com água; lembrou-se de se lavar e limpar o machado. O sangue tornara-lhe as mãos glutinosas. Depois de mergulhar na água o gume do machado, pegou num pedaço de sabão que estava no parapeito da janela e começou as suas abluções. Quando acabou de lavar as mãos, ensaboou o cabo da arma que estava também ensanguentado. 
                    Depois limpou-se a uma roupa estendida a secar numa corda que atravessava a cozinha. Terminada a operação, aproximou-se da janela para examinar minuciosamente o machado.  Os vestígios de sangue tinham desaparecido, mas o cabo estava ainda úmido. Raskolnikoff escondeu-o cuidadosamente debaixo do casaco, pendurado no nó corredio. Depois inspecionou minuciosamente o fato, tanto quanto permitia a fraca luz que iluminava a cozinha. À primeira vista o casaco e as calças nada apresentavam que originasse suspeitas; mas as botas estavam manchadas de sangue. Limpou-as com um pano molhado. 
                    Estas precauções, porem, não o tranquilizam em absoluto, porque não podia ver distintamente e era possível ter-lhe passado despercebida alguma mancha. Deixava-se ficar de braços caídos, no meio da casa, obsediado por idéias aflitivas; o pensamento de que endoidecia, de que nesse momento estava incapaz de tomar uma resolução e de garantia a sua segurança, de que o seu procedimento não era, porventura, o que convinha em tal situação...
                   - "Meu Deus! Devo partir, sem demora, o mais depressa possível!" murmurou ele. 
                   E passou à casa de entrada, onde o esperava a impressão de terror mais intensa que até então experimentara. 
                   Ficou petrificado, sem querer acreditar no que via; a porta exterior que abria sobre o patamar, aquela a que batera e por onde pouco antes entrara, estava aberta; por precaução, talvez, a velha não a fechara; nem tinha dado volta à chave, nem correra o fecho. Mas, meu Deus, ele bem vira depois a Isabel! Como não lhe ocorrera que a adela entrara pela porta? Ela não podia ter entrado pela fechadura. 
                   Fechou a porta e correu o fecho. 
                   - Mas não, não é isto... Preciso sair depressa...
                   Puxou novamente o fecho e entreabrindo a port pôs-se a escutar. 
                   Aplicou o ouvido durante muito tempo. Em baixo, naturalmente à porta da rua, duas vozes jogam-se injúrias. 
                   "Quem será esta gente?" Esperou pacientemente. Por fim, deixaram de se ouvir os doestos; os contendores haviam-se retirado. Preparava-se para sair, quando no andar de baixo se abriu ruidosamente uma porta, e alguém começou a descer, cantando. "Porque fará toda essa gente tanto ruído?" pensou ele; e cerrou outra vez a porta, continuando a esperar. Finalmente o silêncio restabeleceu-se, mas no momento em que Raskolnikoff se preparava para descer, o seu ouvido apurado percebeu novo ruído. 
                    Eram passos ainda muito afastados que subiam os primeiros degraus da escada; no entanto, logo os ouviu, adivinhou imediatamente a verdade; vinham sem duvida para aqui, para o quarto andar, para casa da velha. Como explicar este pressentimento? O que havia nesses passos de tão extraordinariamente significativo? Eram pesados, vagarosos e regulares. 
                    "Ele chegou  ao primeiro andar e continua a subir... cada vez se houve melhor... toma a respiração como um asthmatico... Prepara-se para subir ao terceiro andar... Aí vem!..."
                     Raskolnikoff teve repentinamente a sensação de uma paralisia geral, como quando num pesadelo nos julgamos perseguidos por inimigos que já estão próximos de nós, que assassinar-nos, e ficamos petrificados no mesmo lugar, sem podermos fazer o menor movimento. 
                    O desconhecido começava a subir a escada do quarto andar; Raskolnikoff, a quem o terror até então imobilizara no patamar, pode enfim vencer o torpor e entrou a toda a pressa para casa, fechando a porta imediatamente e correndo o fecho sem fazer o menor ruído. Nesse momento foi guiado mais pelo instinto do que pela reflexão. Encostou-se à porta e pôs-se à escuta, mal se atrevendo a respirar. O visitante já estava no patamar; apenas a porta separava os dois. O desconhecido estava para Raskolnikoff na mesma situação em que este se encontrara ha pouco para com a velha. 
                     O visitante tomou a respiração com esforço, por várias vezes. "Deve ser nutrido e alto", pensou o assassino apertando o cabo do machado. Tudo aquilo lhe  parecia um sonho. O desconhecido puxou violentamente a campainha. 
                     Julgou, por certo,  ouvir ruido no interior, porque durante alguns segundos escutou atentamente. Depois tornou a tocar, esperou ainda algum tempo e de repente, impacientado, puxou com toda a força pelo puxador da porta. Raskolnikoff olhava aterrado para o fecho que oscilava na chapa  e esperava a cada instante vê-lo saltar, tão fortes eram os empuxões. Pensou em segurar o fecho com a mão, mas o homem podia desconfiar. A cabeça recomeçava a andar-lhe à roda. "Estou perdido!" pensou; todavia recuperou a serenidade quando o visitante se pôs a monologar. 
                     - Estarão a dormir ou alguém as estrangularia? Mulheres três vezes malditas! resmungava. Olá! Alena! Ivanovna, velha bruxa! Isabel Ivanovna, beleza maravilhosa! Abram! que excomungadas !  Estarão a dormir? 
                     Exasperado, tocou dez vezes seguidas, com força. Este homem era, sem dúvida, íntimo da casa; parecia mandar ali. 
                     Ao mesmo tempo ouviram-se na ecada passos ligeiros apressados. Era mais alguém que subia para o quarto andar. Raskolnikoff não percebeu a princípio a presença do recém chegado. 
                     - Pois será possível que não esteja cá ninguém? disse este com voz alegre, dirigindo-se ao primeiro visitante, que continuava a puxar pelo cordão da campainha. Bom dia Koch! 
                     "A julgar pela vós deve ser um rapazito, pensou Raskolnikoff. 
                     - Eu sei lá! Por pouco não arrombei a fechadura, respondeu Koch. Mas de onde me conhece o Senhor? 
                     - Que pergunta! ainda anteontem, no Gambrimos,  lhe ganhei três partidas de bilhar a seguir. 
                      - Ah! 
                      - Então, elas não estão em casa! É extraordinário! Direi mesmo, é estúpido. Onde iria a velha? precisava  falar-lhe. 
                       - Também eu, batuchka, precisava  falar com ela. 
                       - Então, que remédio se lhe há de dar? Irmos embora. Ai, ai! E eu que vinha pedir-lhe dinheiro emprestado! exclamou o rapaz. 
                       - Certamente, não há remédio senão irmos  embora; mas para que diabo me disse ela que eu viesse cá? Foi a próprio bruxa que me marcou a hora. E é tão longe de minha casa aqui! Mas onde iria ela? Não entendo!  Ela que se não move durante todo o ano, que está aqui a apodrecer, que sofre de reumatismo, logo hoje é que saiu! 
                        - E se perguntássemos ao dvornik? 
                        - Para que? 
                        - Para saber onde ela foi e quando volta. 
                        - Hum!... que diabo... perguntar... Mas ele nunca sai!... E tornou a puxar pelo puxador da porta. Diabo, não há remédio senão irmos! 
                        - Espere! exclamou o rapaz, olhe, vê como a porta resiste quando se puxa?  
                        - Então?  
                        - É a prova de que não está fechada com a chave, mas só com o fecho. Não o sente mover-se? 
                         - E depois?  
                         - Não percebe? É claro que alguma delas está em casa. Se ambas tivessem saído, teriam fechado a porta por fora com a chave e não corriam o fecho por dentro. Não ouve o barulho que ele faz? Ora, para qualquer fechar uma porta por dentro é preciso estar em casa. Evidentemente elas estão cá. 
                         - É verdade, é! exclamou Koch surpreendido. Então elas estão! 
                         E pôs-se a sacudir a porta furiosamente. 
                         - Veja lá, não puxe com tanta força. Aqui há qualquer coisa... O Senhor tocou, puxou pela porta com toda a sua força e não abriram. Está claro que ou ambas estão desmaiadas ou... 
                         - Ou... o que? 
                         - O que devemos fazer é ir chamar o dvornik para ele próprio as acordar. 
                         - Não é má ideia!
                         - Espere. Não saia daqui enquanto eu vou chamar o dvornik.
                         - Mas para que hei de ficar. 
                         - Ninguém sabe o que poderá acontecer. 
                         - Pois cá fico. 
                         - Ainda espero vir a ser juiz instrutor! Aqui há qualquer coisa que se não percebe, é evidente! disse com vivacidade o rapaz, descendo a quatro os degraus da escada. 
                         Ficando só, Koch tornou ainda a tocar, mas com pouca força; depois pôs-se a mover com ar pensativo o puxador, fazendo oscilar a lingueta para se convencer de que a porta estava apenas fechada com o fecho. 
                          Em seguida, respirando com esforço, agachou-se para olhar pelo buraco da fechadura, mas como a chave estava pela parte de dentro nada conseguiu ver.
                          Encostado à porta, Raskolnikoff apertava na mão o cabo do machado. 
                          Estava como que em delírio e preparando-se para fazer frente aos dois homens quando eles transpusessem o limiar. Mais de uma vez ouvindo-os bater à porta teve a ideia de por termo àquilo e de os interpelar. Sentia vontade de os insultar. "Quanto mais depressa isto acabar, melhor!!" pensava ele. 
                          - Ora esta...
                         O tempo passava e não vinha ninguém. Koch impacientava-se. 
                         - Ora, adeus!... exclamou ele farto de esperar e descendo a encontrar com o rapaz. A pouco e pouco o ruido dos seus passos, que ressoavam pesadamente na escada, foi esmorecendo.
                         - Meu Deus! Que hei de fazer? 
                         Raskolnikoff correu o fecho e entreabriu a porta. Animado com o silêncio que reinava em todo o prédio e não estando nesse momento em estado de refletir, saiu, fechou a porta, e começou a descer a escada. 
                         Descera já alguns degraus, quando, subitamente, ouviu um grande barulho ao fundo da escada. Onde havia ele de meter-se? Mão havia meio de se esconder em parte alguma. Tornou a subir a toda a pressa. 
                         - Oh diabo! diabo! pára! 
                         Aquele que assim gritava acabava de sair de um dos andares inferiores e galgava os degraus de quatro a quatro. 
                         - Mitka! Mitka! Mitka! O diabo que leve o doido!
                         O afastamento não permitiu ouvir mais; o homem que proferira estas exclamações estava já longe. Restabeleceu-se o silêncio; mas mal cessara este incidente, produziu-se outro; uns poucos homens falando em voz alta subiam tumultuosamente a escada. Eram três ou quatro. Raskolnikoff distinguiu a voz sonora do rapaz. 
                         - São eles! 
                         Já  não esperando escapar-lhes, correu ousadamente ao seu encontro. 
                         - Suceda o que suceder! pensou ele. Se me prenderem, deixá-los! Se me deixarem passar, passarei. Mas hão de lembrar-se de terem cruzado comigo na ecada... Ia dar-se o encontro. Só um andar os separava... Repentinamente, Raskolnikoff encontrou a salvação! Uns degraus mais, e à direita, estava desabitada e com a porta aberta uma das divisões, o aposento do segundo andar onde trabalhavam os pintores. Muito a proposito acabavam de o abandonar. 
                        Eram certamente eles que haviam saído há pouco, fazendo aquela algazarra. Percebia-se que a tinta dos sobrados estava ainda fresca. Os pintores tinham deixado no meio do quarto uma lata de tinta e um grande pincel. Num momento Raskolnikoff introduziu-se no quarto desocupado e encostou-se na parede. Era tempo dos seus perseguidores chegarem um momento depois ao patamar, continuando a subir para o quarto andar, falando alto. Depois de esperar que se afastassem, saiu nos bicos dos pés e desceu precipitadamente. 
                       Ninguém na ecada! ninguém na porta! Transpôs rapidamente o portal e, chegando à rua tomou pela esquerda. 
                       Raskolnikoff tinha certeza de que naquele momento os visitantes da velha, depois de se espantarem por verem a porta aberta, contemplavam cheios de horror os dois cadáveres. 
                        - Não lhe será por certo mais de um minuto para adivinharem que o assassino conseguiu escapulir-se enquanto subiam a escada... 
                        Mas, enquanto fazia estas reflexões, não se atrevia a estugar o passo, apesar de estar ainda um pouco distante da primeira esquina.   
                        - Se eu entrasse num portal, e esperasse lá um instante? - Nada, isso não tem jeito! Se fosse atirar o machado para qualquer parte? Se me metesse num trem? Nada, nada disso...
                        Finalmente chegou a um pereoulok, mais morto do que vivo. sabia que podia considera-se salvo. Ali as suspeitas  não podiam incidir sobre ele; e depois era-lhe mais fácil não despertar a atenção no meio dos transeuntes. Mas as sucessivas comoções tinham-no de tal modo prostrado, que sentiu vergarem-lhe as pernas. 
                        Corriam-lhe pelo rosto grandes gotas de suor. 
                        - Já tens a tua conta, disse-lhe alguém, quando ele ia a desembocar no canal, julgando-o bêbado. 
                        Estava atordoado; quanto mais caminhava, mais lhe baralhavam as ideias. Quando chegou ao cais, assustou-se por lá ver tão pouca gente e, receando que o notassem em lugar tão pouco concorrido, voltou a pereoulok. Conquanto mal se aguentasse de pé, fez um grande rodeio para voltar a casa. Quando lá chegou ainda não estava de posse da sua serenidade; não se lembrou do machado senão quando já sumia a escada. E no entanto, o problema que ele tinha a resolver era dos mais sérios: tornar a colocar a arma onde a encontrara, sem atrair a atenção. Se estivesse em estado de apreciar a sua situação, teria certamente compreendido que em vez de colocar o machado no seu lugar, seria preferível desfazer-se dele, atirando-o para o pátio duma casa qualquer. 
                       Mas tudo correu à medida dos seus desejos. A porta do cubículo estava encostada, mas não fechada, o que levava a crer que o dvornik estava em casa. Mas Raskolnikoff perdera a tal ponto o raciocínio, que abriu a porta. Se o dvornik lhe perguntasse "o que teria?" talvez, sem dizer uma palavra, lhe entregasse o machado. Mas, como horas antes, não estava lá, e Raskolnikoff pode colocar o machado debaixo do banco, onde o tinha encontrado. 
                     Depois subiu a escada e chegou ao quarto sem encontrar viva alma; a porta da hospedaria  estava fechada. Logo que entrou em casa, deitou-se mesmo vestido, no divã. Não dormiu, mas caiu numa espécie de torpor. Se alguém tivesse então entrado no quarto, ele ter-se-hia levantado e não poderia conter um grito. No seu cérebro chocavam-se pensamentos diversos; mas por mais esforços que fizesse, não conseguiu seguir nenhum. 

                  BREVE BIOGRAFIA de Dostoievsky 
                  Feodor Michailovitch Dostoievsky, romancista e jornalista russo, nasceu em Moscou a 11 de Novembro de 1822 e morreu a 9 de Fevereiro de 1881. Preso por ter tomado parte na conspiração de 1849, a sua sentença  de morte foi comutada pela de exílio, tendo sido perdoado na acessão de Alexandre II. Entre as suas obras estão incluídas: "Humilhados e Ofendidos", 1846; Recordações da casa dos mortos", das memórias da Sibéria", 1858; Crime e Castigo, 1866, etc. 
Nicéas Romeo Zanchett 

                     

                    

domingo, 23 de junho de 2013

A AVAREZA - Por Rodrigues Lobo



A VAREZA 
Por Rodrigues Lobo 
                   No mesmo tempo em que os amigos se juntaram para o seu costumeiro exercício, se apeava a prior no patio de Leonardo; que o desejo que lhe causara a noite do dia dantes o fez tornar mais cedo da cidade. Foi recebido  com alegria, e depois de lhe perguntarem do bom sucesso de sua jornada, lhe disse Solino: 
                   - Agora vejo que roubou a ventura e empresa daquela  peregrina ao sr. D.Julio; pois a deu a quem a deixa de ver por nós ouvir. 
                   - Antes vereis, respondeu o prior, quão poderoso é o ouro, que até para ouvir falar nela deixo a própria casa, e nela a vista de tão estremada formosura. 
                   - Não sois vós, acudiu Leonardo, o primeiro que a deixastes por ouro, nem usais nesta ocasião como avarento, pois que vindes com esse título de cobiça enriquecer  a todos, e a esta casa. 
                   - Vós, respondeu ele, me endividais para me empobrecer com a mercê e cortesia que me fazeis; de maneira que sempre o meu erro é dourado para contentar os cobiçosos, quando pareça a Solino culpa deixar a vista da minha hospeda pelo interesse da vossa conversação. 
                   - Não é só ele o que vos acusa, disse D. Julio, antes eu de a vós deixardes me queixo, ainda que de a acompanhardes tinha ciumes.  
                   - Só esses faltavam, tornou Solino, para a conversação ficar de ouro e de azul; mas se deste se batera moeda, nenhum de nós se queixara de pobre, porque a dos comprimentos é a mais corrente de todas. Porque o maior  mal que o ávaro faz ao ouro é impedir-lhe a corrente com a prisão em que o encerra, podendo com ele até às prisões fazer agradáveis e formosas, que para isso imagino que se inventaram as cadeias e grilhões de ouro, que dele servem para ornato, e dos outros metais para castigo. 
                   - Não me descontenta essa razão, disse Leonardo, por que esse ouro quando sai da mina, antes de o pôr em seus quilates , chamam os artífices ouro bruto, quanto com mais razão merece este nome o que o avarento tem escondido e fechado? E a este propósito me cabe contar uma história que li esta manhã; e se for sobejo, pelo que calei a noite passada, se pode descontar o que eu agora disser. 
                   "Houve em Itália, um um dos mais conhecidos lugares dela, um honrado pai de família, nobilíssimo por geração, rico de bens procedido de herança e nobreza antiga de seus antepassados, dotado de muitas partes, e graças da natureza, e tão liberal do que possuía, que mais parecia dispenseiro de riquezas, que carcereiro delas. Teve este em sua mocidade, um filho tão industrioso e esperto nos negócios de mercancia, que ajuntou em poucos anos grande cópia de dinheiro, o qual ele guardava com tão solícito cuidado, como costumam os que com cobiça e trabalhos o adquiriram; era notável espanto aos naturais verem em um velho a largueza e liberalidade do mancebo; e em o filho a avareza e tenacidade de velho. O pai, que o via responder tão mal às suas inclinações, e que já com a idade  e continuação de gastar largo, estava menos rico, muitas as vezes lhe dizia e aconselhava com brandura que conservasse, com o que ganhara, a honra que tinha de seus passados; e não degenerasse deles, por seguir a vileza do interesse; que usasse das riquezas como nobre, e favorecesse a velhice de quem o criara, e honrasse aos pequenos irmãos que tinha; que fosse proveitoso aos amigos e parentes; benigno aos pobres e se não cativasse ao trabalho de entesourar riquezas sem fruto. mas como falar a um morto, e aconselhar a um avarento é cuidado vão, nenhum efeito faziam os paternos rógos  em sua má natureza.  Sucedeu que o senado daquela república por a nobreza e pessoa do mancebo, e pela indústria e sagacidade que mostrava, o elegeram em companhia de outros para ir com uma embaixada a Roma  ao Sumo Pontífice. Depois de sua partida, vendo o pai ocasião ao que havia muito desejava, mandou secretamente fazer chaves falsas, com que  secretamente entrou na câmara do filho; e abriu os cofres em que aquele inútil tesouro  estava depositado; e com a brevidade que o desejo lhe pedia, vestiu a si, a sua mulher e filhos custosamente; deu libré a seus criados; comprou ricas armações e baixelas; encheu a estrebaria de cavalos formosos; fez esmolas a muitos pobres; acudiu em ocasiões a parentes e amigos necessitados; dispende aquela prata e ouro que o filho com muitas vigílias ajuntara da maneira em que ele, quando florescia em riquezas usava delas. Gastando o dinheiro encheu os sacos em que antes  estava, de miúdos seixos e areia; e posto tudo na mesma ordem em que o filho o deixara, tornou a fechar os cofres e as chaves como dantes. Tornou depois o filho da sua embaixada; e os pequenos irmãos o foram esperar à entrada da cidade vestidos custosamente, e com o magnífico aparato de que então usavam. Vendo-se o irmão rodeado deles ficou confuso; e enleado lhes perguntou logo donde  houveram tão ricos vestidos, e tão formosos cavalos. Ao que eles com uma simplicidade inocente responderam  que seu pai e senhor vivia com diferente largueza da que dantes tinha; eque outros trajes e cavalos de maior preço  lhe ficavam. Entrando depois em casa de seu pai, nem a ela, nem a ele, conhecia, pelo diferente estado em que a deixara; e como esta mudança se lhe não aquietava o coração, foi-se com muita pressa aonde o tinha posto. Entrou na sua câmara, abriu os cofres; e vendo que os sacos estavam cheios, e de maneira que ele os deixara, se aquietou, porque não dava lugar a mais vagarosa experiência a pressa com que os companheiros o chamavam, e o senado o esperava.  Depois que deu fim àquela obrigação, que a ele não pareceu que fosse tão custosa, fechando-se devagar no seu aposento, abriu as arcas e os sacos, em que lhe parecia que estava a sua bem aventurança; e vendo o engano da areia e seixos que dentro tinham, começou a  gritar com grandes lamentações e brados, a que primeiro que todos acudiu o generoso velho, perguntando-lhe que tinha? de que se queixava? e quem o ofendera?
                  - Ai de mim, disse ele, que me roubaram as riquezas que com tantos trabalhos e em tão largo discurso de anos tinha granjeadas.
                  - Como é possível que tenham roubado, respondeu o pai, se eu vejo esse cofres e sacos cheios, que parece que não podiam tirar nada deles, e nem eles levarem mais? 
                  - Ai de mim, tornou o filho, que o de que eles estão cheios não é de ouro e prata com que os deixei; que não tem agora mais que pedras e areia sem proveito. 
                  A isso respondeu o generoso pai, sem no rosto fazer mudança: 
                  - Ah! engraçado filho! que importava para ti que estes sacos estivessem cheios de ouro ou de areia grossa, se tua avareza te não deixará fazer nas obras diferença dela?
                  Cessaram os brados, mas já com o sentimento de filho com esta resposta, que a mim me parece digna de ser contada entre as mais celebres do mundo.  
                  - Eu a tenho por tal, disse o prior, e a história por maravilhosa para o nosso intento; e andou muito bem o pai a cumprir em vida o testamento do filho; porque, como disse Pub. Mimio, nenhuma coisa o ávaro faz boa, senão quando morre, porque deixa o que tem a quem possa usar dele. 
                   E o mesmo, disse Feliciano, escreveu que para ninguém o avarento é bom; e para si pior que pata todos; pois não dispende nem se aproveita; e neste sentido me parece maravilhosa a alegoria daquela engenhosa fábula de Midas, que, pedindo aos deuses, como cobiçoso, que tudo o que tocasse se lhe convertesse em ouro, perecia de fome na grande abundância do que pedira. E quando a necessidade o fez mudar a petição forçado do mal que como bem procurara, lhe mandaram que fosse lavar ao rio Pactolo, que fez corrente do que ele queria fazer estante, pondo em suas douradas areias, para comunicar a todos o que Midas só para si queria ter usurpado. - Bem se representou em Midas, acrescentou Píndaro  um cobiçoso no pedir e em se não aproveitar; que por isso disse Sêneca   que mais facilmente se atreveria a alcançar da fortuna que desse, que de um cobiçoso que não pedisse.

NOTA: Procurei manter a mesma forma de expressão (português de Lisboa da época), sempre considerando que trata-se de uma obra do século XVI de Rodrigues Lobo. 
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                 BREVE BIOGRAFIA DE  Rodrigues Lobo.
                 Francisco Rodrigues Lobo, que se supõe ter nascido em Leiria, sem que se saiba a data e sem que se conheça qualquer outra circunstância, viveu sempre naquela cidade, de onde saiu apenas algumas vezes em direção à Lisboa. Uma dessas vezes, embarcando em Santarém para descer o Rio Tejo naufragou por causa de um temporal e pereceu no rio. O seu cadáver foi arrojado á praia e sepultado em uma capela denominada das Queimadas no Convento de S.Francisco que se incendiou a 30 de Novembro de 1741. Julga-se que ete desastre tenha sucedido depois de 1623, ano em que o autor ainda vivia, pois ele publicou uma das suas obras em espanhol "La jornada de la majestad Catholica del-rey Filippe III hizo al reyno de Portugal", etc. Publicou mais: "Romances", 1596; "As Eclogas", 1605; "O Pastor Peregrino", 1608; "O Condestabre de Portugal Don Nuno Alvarez Pereira", 1610; "Côrte na Aldeia e Noites de Inverno", 1619. Algumas destas obras tiveram depois outras edições, e em 1774 publicaram-se 4 volumes das "Obras Poéticas e Pastoris de Francisco Rodrigues Lobo".  Este escritor é considerado um dos clássicos portugueses de primeira ordem, no tocante à correção e energia  da linguagem. No século XVII foi o lírico mais completo e apaixonado, e inimitável na forma da serranilha, "a que outro canto que ao som do rabil - cantavam os serranos."
Nicéas Romeo Zanchett  
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                     MORAL DA HISTÓRIA: Muitos são os grandes acumuladores de fortuna. Entre eles podemos citar Cornélio Wanderbit (imperador das ferrovias); Beto Rockfeller (rei do petróleo);  Andy Carnegie, J.P.Morgam, John Ford e atualmente Bill Gates. Os primeiros foram os grandes construtores da indústria americana; o último, que dispensa comentários, é o exemplo de empreendedor dos nossos dias. 
                     Uma coisa interessante a se observar é que, somente após a morte do primeiro grande empreendedor é que todos os demais perceberam que também eram mortais. A partir de então, iniciou-se entre eles, uma fase de filantropia que mais parecia uma nova grande competição. Antes competiam para ver quem acumularia mais dinheiro; depois passaram a competir para ver quem teria coragem de distribuir mais. Em dinheiro do hoje (cálculos atualizados), Rockfeller teria distribuído cerca de cem bilhões de dólares. O Bill Gates tem feito grandes filantropias através da Fundação que leva seu nome. 
                       Na verdade precisamos de muito pouco para viver feliz. O excesso de dinheiro acumulado por alguns é que causa a falta para outros que querem apenas viver modestamente. Quem acumula grande fortuna deixa de ser seu proprietário e passa a ser seu escravo. Isso gera enorme infelicidade. 
Nicéas Romeo Zanchett 

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O CONDE DE MONTE-CRISTO- Por Alexandre Dumas


O CONDE DE MONTE-CRISTO
Alexandre Dumas
                Dentre todos os livros mais lidos do mundo, ocupa lugar de destaque o romance de Alexandre Dumas, intitulado o Conde de Monte-Cristo. Os numerosos anos não diminuíram o encanto que essa obra exerceu sobre nossos avós. Ainda hoje, muitos leitores se comovem e entusiasmam com as vicissitudes de Edmundo Dantés e Mercedes, com a perfídia de Danglars, com a felonia de Fernando Mondego, enfim, com todos os personagens que se apresentam nas aventuras desenroladas nesse romance, tão arrebatador e cheio de fantasia. Alexandre Dumas tinha quarenta e um anos  quando a obra foi publicada. 

                    A quem contempla, do alto de Nossa Senhora da Guarda, Marselha e seu porto, se apresenta, à esquerda da baía do mesmo porto, uma ilhota acidentada, com uma área de poucas centenas de metros; é a pequena ilha de If, onde surgem os restos de um castelo-fortaleza, que no passado, constituiu uma das defesas da ilustre cidade litorânea. Em "O Conde de Monte-Cristo, aquele castelo desempenha importante  papel, porque, em seus tétricos calabouços, se desenvolve  a ação do romance. 
                    O personagem principal é Edmundo Dantés, um jovem  oficial da marinha mercante, leal e generoso, que durante uma viagem do veleiro em que embarcara, chega à ilha de Elba, onde está relegado Napoleão Bonaparte, entre fins de 1814 e princípio de 1815. A Edmundo Dantés é confiada uma carta, que ele deverá entregar aos bonapartistas marselhenses, mas dois homens, com inveja do muito jovem oficial, tramam contra ele, denunciando-o como conspirador que trabalhava para a volta de Napoleão  ao poder. 
                    O mais encarniçado dos dois é Danglars, secretário armador, junto ao qual Edmundo goza de simpatia e cordialidade, e o outro é um catalão, Fernando Mondego, apaixonado pela prima Mercedes, noiva de Edmundo. Um terceiro personagem, o alfaiate Caderousse, assiste, sem protestar, à infâmia que ambos estão cometendo, escrevendo uma carta anônima, a fim de denunciar seu amigo e rival. Por isso, no próprio dia da celebração de núpcias de Mercedes e Edmundo, os esbirros borbônicos interrompem a cerimônia, prendem e levam consigo o inocente, que é trancafiado numa cela subterrânea do castelo de If. 
Inutilmente, o velho pai do prisioneiro se movimenta, a fim de poder provar a inocência do filho, pois ninguém o atende, e também em vão trabalha para o mesmo fim o honesto armador Morel. 
                    Os acontecimentos se precipitam, e talvez Edmundo ficaria  isento de qualquer culpa e posto em liberdade,  se não tivesse tido a desventura de ser interrogado por um pérfido juiz  o Senhor de Villefort, ao qual o acusado confessa que a carta pela qual ele está preso era dirigida a um irrequieto bonapartista que, infelizmente, é pai do mesmo juiz. Este então, receando que um processo contra seu pai pudesse comprometer-lha a carreira, ordena que Edmundo permaneça prisioneiro no castelo de If. E, nessa relegação absoluta, o infeliz Dantés irá viver catorze duros anos, porque durante seu efêmero regresso, que durou cem dias, Napoleão não teve tempo de interessar-se pelo recluso. Uma vez desaparecido definitivamente o derrotado Corso, o Senhor de Villefort não muda a decisão; a fim de poder prosseguir  tranquilamente  sua própria ambiciosa carreira de magistrado, sem ter a mácula de um pai acusado de conspiração, Edmundo Dantés deverá continuar nas celas de If. 
                    Edmundo encontra-se, portanto, sozinho, num cárcere subterrâneo, mas, um dia, ao seu ouvido ansioso chega  o débil eco de algumas pancadas, como de um escavador que, lentissimamente, estivesse trabalhando rumo a uma das paredes de seu cubículo. Pouco depois, de fato, eis que uma laje de pedra cede e do buraco surge um velho,  de cabelos e barbas compridos; é o Abade Faria, condenado e enterrado numa cela pouco distante daquela  do marinheiro. A princípio, o Abade Faria fica aturdido; ao cavar, contava sair no mar, mas enganara-se inexplicavelmente  e fora aparecer em outra cela. Mas Edmundo, ante a tentativa fracassada do companheiro de infortúnio, sente-se compelido a imitá-lo; irá cavar outra galeria,e, por meio desta, ele e o velho evadir-se-ão. Será necessário algum ano de trabalho, mas isso não importa. No entanto, durante as longas horas que cotidianamente passam juntos, o velho instrui o jovem; dotado de cultura realmente espantosa, o Abade Faria encontra em Edmundo um aluno cheio de atenção e de inteligência, que o haviam capturado; depois, arruína Villefort, facilitando um crime de sua esposa, que acaba se suicidando, e, no espaço de poucos meses, o jovem homem do mar extrai vantajoso proveito dos doutos ensinamentos do seu amigo, enquanto os trabalhos do novo túnel progridem. Mas, um dia, o pobre Abade morre. Desesperado, Edmundo já perdera toda a esperança de sair da fortaleza, quando lhe surge na mente uma ideia; tentar a  evasão de qualquer maneira, em hora diversa daquela  que ambos haviam planejado a tanto tempo. Os guardas haviam posto o corpo do velho num saco, que, à noite, lançariam ao mar; então ela retira o cadáver dali, arrasta-o para sua cela, e toma o lugar do outro. Os guardas vem buscar o saco, levam-no para fora e atiram-no à água. Edmundo sai do seu invólucro e nada por muitas horas. Já está prestes a cair exausto, quando um barco de pescadores o recolhe a bordo e, prosseguindo sua rota, leva-o para longe da França. Durante os meses que passara com Faria, este lhe falara de um extraordinário tesouro enterrado na ilha de Monte-Cristo, e a essa ilha desabitada o fugitivo se dirige e descobre o tesouro, que é ainda mais valioso do que lhe dissera o Abade, e dele se apodera. 
                       Pouco tempo depois, faz sua aparição em Paris um personagem que, com suas fabulosas riquezas e com sua atitude, atrai a curiosidade da alta sociedade parisiense. Faz-se chamar de Conde de Monte-Cristo, dispões de seu dinheiro de maneira principesca; com altos gastos revela-se em tudo um grande senhor. Mas, algumas vezes, o Conde desaparece e então, entra em cena o Abade Busoni, o qual vaia visitar tanto o armador Morel quanto o alfaiate Caderousse. O primeiro ajudara o pai de Dantés, mas agora, tendo-lhe naufragado seu último veleiro, está à beira da ruína. O Abade providencia tudo para que Morel seja salvo, e depois vai em busca de Caderousse, que não trabalha mais como alfaiate, e possui um restaurante no campo. Também Caderousse, nos limites de suas modestas posses, auxiliara o velho Dantés, e o Abade o recompensara com uma preciosa gema. Infelizmente, esta serve apenas para excitar os maus instintos de Caderousse que, após have-la vendido a um mercador, mata-o para retomar a joia e apodera-se do dinheiro. 
                       Havia muitos anos que aqueles que tinham lançado  Edmundo às masmorras do castelo de If viviam uma existência luxuosa, cheios de honrarias. Danglars tornara-se banqueiro. Mondego, com o titulo de Conde de Morcerf, fora nomeado general e desposara a desolada  Mercedes; o juiz Villefort alcançara o mais alto grau da magistratura. Tudo corria bem para os malfeitores, mas suas vidas faustosas estavam com os dias contados. O Conde de Monte-Cristo atrai todos os três para sua órbita e, com sutil perfídia, inicia a vingança de Edmundo Dantés. Antes de tudo, arruína o  banqueiro, obrigando-o a entregar até o último dos seus recursos para livrar-se de uma quadrilha de salteadores em companhia de seu filho menor. E, por último, desmascara Moorcerf, que se torna riquíssimo e fora nomeado general, somente por haver traído, de maneira ignóbil, ali, o paxá de Janina, vende-o aos turcos. 
                       Sem revelar sua identidade, o Conde de Monte-Cristo consegue reerguer a indústria dos estaleiros de Morel, ameaçada por gravíssima crise, tornando feliz o filho do falecido armador. 
                       E quando Alberto de Morcerf, que nada sabia das velhacarias do pai e se julga certo de estar cumprindo um dever de filho, desafia aquele que acusara Mondego perante o Senado, obrigando-o ao suicídio, a fim de não sofrer a suprema vergonha de uma condenação, o Conde de Monte-Cristo parece resolvido, dada sua formidável habilidade no manejo da pistola, a matar, inexoravelmente, o filho daquela Mercedes, que tão depressa o esquecera, casando-se com o primo. Mas, durante a noite precedente ao duelo, a própria Mercedes vem atirar-se-lhe aos pés. Somente ela reconhecer, no enigmático Conde de Monte-Cristo, aquele Edmundo Dantes, com o qual estivera prestes a casar-se, e ela o suplica para poupar o jovem inocente. A sede de vingança, que por tantos anos abrasara o coração e a mente de Edmundo Dantés, apaga-se diante do pranto desconsolado da infeliz mãe e, na manhã seguinte, ao chegar ao campo de luta, o habilíssimo atirador, na presença dos padrinhos, apresenta suas desculpas a Alberto que, já resignado a morrer pela mão daquele insuperável adversário, quase nem acredita no que houve. 
                      Alguns dias depois, Alberto de Morcerf deixa a França, para ir lavar a nódoa paterna, combatendo na Legião Estrangeira, na  África, e Edmundo Dantés, que para todos continua sendo o Conde de Monte-Cristo, parte rumo ao Oriente, com Haidéia, a filha do Paxá de Janina, que ele salvara da escravidão e que o ama meigamente. 
                      O Conde de  Monte-Cristo é a epopeia da vingança; uma vingança implacável, auxiliada pela descoberta de um fabuloso tesouro, organizada por uma frieza e uma grande habilidade. Talvez Edmundo Dantés não teria sido tão inexorável, se Danglars, Morcerf e Villefort tivessem ferido apenas ele; mas provocaram a ruína de seu pobre pai, apresentando-lhe a morte pela miséria, e o filho não sabe nem sequer perdoar aqueles que escolheram como primeira vítima de sua perversidade o velho Dantés. 




BREVE BIOGRAFIA DE 
Alexandre Dumas.
Nascido em 1803, filho de um valoroso general napoleônico, que morreu quando Alexandre era ainda adolescente, precisou sujeitar-se, para suportar a si próprio e a mãe, a trabalhar como copista junto ao Duque de Orleans; mas, nesse emprego, não devia permanecer muito tempo, porque já em 1829, com apenas vinte e seis anos, o bom êxito de seu primeiro drama histórico Henrique III, abre-lhe as portas da celebridade, e coloca-o no restrito número dos autores melhor remunerados. 
                  No breve giro de alguns anos, seis dramas, além de Henrique III, conquistaram-lhe a preferência do público, que não se fartava de assistir às representações dos mais felizes, como Antony e Kean.  Vieram depois, os romances:  "O Cavaleiro d'Harmental", em 1843, "Os Três Mosqueteiros",  e "O Conde de Monte-Cristo", em 1844, "Vinte Anos Depois", em 1845, "O Visconde de Bragelonne", em 1848, e mais uma longa série, quase um por ano, todos de romances de aventuras, tendo, na sua maioria, como enredo  um período histórico ou algum clamoroso episódio da vida contemporânea. Genial e generoso, ativíssimo e benquisto  não só na França, mas também na Inglaterra,na Espanha, na Itália, à época da   expedição dos 'Mil", uniu-se a Garibaldi, na Sicília, lhe ofereceu todo o dinheiro que possuía, empregando-o, na França, para armas e munições destinadas aos "Camisas Vermelhas".  Em Nápoles, Garibaldi  nomeou-o diretor das Belas-Artes, cargo que permitiu ao dinâmico escritor dedicar-se novamente a suas pesquisas, nas escavações de Pompéia, e de fundar um apreciado jornal, sob o título de "O Independente". 
                   Admirador incondicional de Napoleão Bonaparte e dos Marechais do Corso, que com o imperador tinham colaborado - justificando-se com o exemplo do grande conquistador -, também assumiu alguns colaboradores, dentre os quais o mais famoso foi Augusto Maquet, cuja mão se reconhece especialmente na tua trama de "Os Três Mosqueteiros" e respectivo ciclo. 
                    Intensamente aplaudido, aclamado pelo público de todos os teatros, Alexandre Dumas morreu, aos sessenta e sete anos, no dia 6 de dezembro de 1870, deixando à posteridade um importante número de obras. 
                    "O Conde de Monte-Cristo" fora publicado em plena era romântica, que é o fruto do romantismo, não podia deixar de encontrar pleno êxito, que ainda hoje persiste, a quase dois séculos da primeira edição. As reedições continuam, e os leitores interessam-se e palpitam por esses personagens, que se tornaram o símbolo de outros tantos destinos: Edmundo, o vingador; Danglars, o invejoso; Mondego - Morcerf, o traidor; Villefort, o ambicioso; Mercedes, a mulher que, por causa da sua fraqueza,  se deixou envolver pelos acontecimentos.  
                     Uma obra que se passa  entre as conspirações bonapartistas e os "Cem Dias" até a Revolução Francesa; da desesperada solidão do subterrâneo do castelo-presídio de If à douta companhia do Abade faria; da selvagem beleza da ilha de Monte-Cristo ao fausto da alta sociedade parisiense; da ruidosa Roma de 1830 à solenidade do Senado Frances, reunido para julgar um seu membro, o general Conde  de Morcerf. Através de tantas vicissitudes, animado por tantos personagens, não deixa jamais um só momento de trégua ao leitor, porque os golpes de cena e os imprevistos se sucedem num contínuo redemoinho que, se de um lado estarrece, de outro revela a poderosa fantasia do escritor, que nos deixou, além deste romance, tantas outras obras densas de trama, ricas de figuras, interessantes, em cada uma de suas páginas.  
Nicéas Romeo Zanchett 
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